Carta Aberta ao Presidente da República
Por DIOGO FREITAS DO AMARAL
Público, Terça-feira, 29 de Junho de 2004
Ainda algo atordoado com o terramoto político que caiu sobre Portugal, não
quero deixar de lhe pedir, respeitosamente, que, antes de tomar a sua
decisão definitiva, pondere os aspectos que a seguir indico:
a) Embora, no plano jurídico-formal, as eleições legislativas tenham apenas
por objecto a designação de 230 deputados, a verdade é que uma análise
substancial de ciência política mostra claramente que elas tem hoje dois
outros grandes objectivos - revelar o peso proporcional dos vários partidos,
e escolher um primeiro-ministro. Foi o que se passou com Sá Carneiro em 1979
e 1980, com Mário Soares em 1983, com Cavaco Silva em 1985, 1987 e 1991, com
António Guterres em 1995 e 1999, e com Durão Barroso em 2002.
b) Sendo as coisas assim, como são, temos de concluir que as chamadas
eleições "legislativas" se transformaram numa escolha popular do
primeiro-ministro. É por isso que Maurice Duverger chama democracias
"directas" àquelas onde isso acontece, e "indirectas" àquelas onde o
primeiro-ministro pode ser escolhido - sem eleições - por novos arranjos
parlamentares ou por meras decisões das cúpulas partidárias. Não tenho
dúvidas de que Portugal pertence, há pelo menos 25 anos, ao primeiro grupo;
e seria muito mau, por várias razões, que deixasse de pertencer.
c) Agora que o primeiro-ministro decidiu voluntariamente apresentar a sua
demissão (por motivos que não pretendo discutir aqui), penso que V. Exa.
deveria contribuir para manter Portugal como "democracia directa", no
sentido especial que a esta expressão dá Duverger. Durão Barroso foi
primeiro-ministro em 2002 porque ganhou umas eleições; dado que sai do
Governo, e que este cai, o próximo primeiro-ministro deve igualmente ser
escolhido através de eleições. Era esta a proposta, lúcida e sábia, de
Pierre Mendès-France na sua famosa obra "La Republique Moderne" - onde se
defendia, com excelentes argumentos, que a escolha do primeiro-ministro deve
pertencer sempre ao eleitorado, e não às "combinações" parlamentares ou aos
"directórios" partidários.
d) Acresce que o país está em crise política, económica e social. O próximo
Governo precisa de plena legitimidade política. Se Durão Barroso foi
escolhido pelo voto de sete milhões de portugueses, deveremos achar bem que
o seu sucessor - com todas as dificuldades que vai enfrentar - seja
escolhido por 70 dirigentes partidários?
e) Há na nossa Democracia dois precedentes no sentido de não aceitar
governos e primeiros-ministros que não tenham saído directamente de
eleições: a recusa, pelo Presidente Eanes, do projectado governo de Victor
Crespo (AD), em 1983; e a recusa, pelo Presidente Soares, do esboçado
governo do PS-PRD, em 1987. É essa a boa prática constitucional portuguesa.
E repare-se: no primeiro caso era até a mesma maioria parlamentar que
propunha um novo primeiro-ministro dela emanado; só que ela não tinha ido a
votos.
f) Dir-me-ão que, em sentido contrário, pode invocar-se o precedente da
escolha de Francisco Pinto Balsemão, em 1981, por morte de Sá Carneiro. O
caso não tem, contudo, analogia com a situação presente: primeiro, porque o
País estava em estado de choque com a morte violenta de Sá Carneiro e Amaro
da Costa, o que não era uma atmosfera propícia a eleições; e, depois, porque
tinha acabado de haver eleições legislativas dois meses antes, e não faria
sentido convocar novas eleições dentro de um intervalo tão curto.
Diferentemente, agora, não houve qualquer morte violenta (felizmente); e as
últimas eleições já foram há mais de dois anos.
g) É certo, por outro lado, que o País ganha em beneficiar com a
estabilidade política e governativa. Mas quem quebrou a estabilidade, neste
caso, foi o primeiro-ministro cessante, não foi o Presidente da República,
nem o Parlamento. E alguém pode garantir-nos que um novo primeiro-ministro,
escolhido sem eleições terá legitimidade política e autoridade institucional
suficientes para assegurar estabilidade ao país?
h) Por todas estas razões, permito-me solicitar-lhe Sr. Presidente que
dissolva a Assembleia da República e convoque eleições gerais para o Outono;
para não converter a nossa democracia em "partidocracia". E que o faça antes
de o PSD lhe propor qualquer nome, em concreto para o cargo de
primeiro-ministro, de modo a não transformar uma questão de princípio numa
questão pessoal.
Por DIOGO FREITAS DO AMARAL
Público, Terça-feira, 29 de Junho de 2004
Ainda algo atordoado com o terramoto político que caiu sobre Portugal, não
quero deixar de lhe pedir, respeitosamente, que, antes de tomar a sua
decisão definitiva, pondere os aspectos que a seguir indico:
a) Embora, no plano jurídico-formal, as eleições legislativas tenham apenas
por objecto a designação de 230 deputados, a verdade é que uma análise
substancial de ciência política mostra claramente que elas tem hoje dois
outros grandes objectivos - revelar o peso proporcional dos vários partidos,
e escolher um primeiro-ministro. Foi o que se passou com Sá Carneiro em 1979
e 1980, com Mário Soares em 1983, com Cavaco Silva em 1985, 1987 e 1991, com
António Guterres em 1995 e 1999, e com Durão Barroso em 2002.
b) Sendo as coisas assim, como são, temos de concluir que as chamadas
eleições "legislativas" se transformaram numa escolha popular do
primeiro-ministro. É por isso que Maurice Duverger chama democracias
"directas" àquelas onde isso acontece, e "indirectas" àquelas onde o
primeiro-ministro pode ser escolhido - sem eleições - por novos arranjos
parlamentares ou por meras decisões das cúpulas partidárias. Não tenho
dúvidas de que Portugal pertence, há pelo menos 25 anos, ao primeiro grupo;
e seria muito mau, por várias razões, que deixasse de pertencer.
c) Agora que o primeiro-ministro decidiu voluntariamente apresentar a sua
demissão (por motivos que não pretendo discutir aqui), penso que V. Exa.
deveria contribuir para manter Portugal como "democracia directa", no
sentido especial que a esta expressão dá Duverger. Durão Barroso foi
primeiro-ministro em 2002 porque ganhou umas eleições; dado que sai do
Governo, e que este cai, o próximo primeiro-ministro deve igualmente ser
escolhido através de eleições. Era esta a proposta, lúcida e sábia, de
Pierre Mendès-France na sua famosa obra "La Republique Moderne" - onde se
defendia, com excelentes argumentos, que a escolha do primeiro-ministro deve
pertencer sempre ao eleitorado, e não às "combinações" parlamentares ou aos
"directórios" partidários.
d) Acresce que o país está em crise política, económica e social. O próximo
Governo precisa de plena legitimidade política. Se Durão Barroso foi
escolhido pelo voto de sete milhões de portugueses, deveremos achar bem que
o seu sucessor - com todas as dificuldades que vai enfrentar - seja
escolhido por 70 dirigentes partidários?
e) Há na nossa Democracia dois precedentes no sentido de não aceitar
governos e primeiros-ministros que não tenham saído directamente de
eleições: a recusa, pelo Presidente Eanes, do projectado governo de Victor
Crespo (AD), em 1983; e a recusa, pelo Presidente Soares, do esboçado
governo do PS-PRD, em 1987. É essa a boa prática constitucional portuguesa.
E repare-se: no primeiro caso era até a mesma maioria parlamentar que
propunha um novo primeiro-ministro dela emanado; só que ela não tinha ido a
votos.
f) Dir-me-ão que, em sentido contrário, pode invocar-se o precedente da
escolha de Francisco Pinto Balsemão, em 1981, por morte de Sá Carneiro. O
caso não tem, contudo, analogia com a situação presente: primeiro, porque o
País estava em estado de choque com a morte violenta de Sá Carneiro e Amaro
da Costa, o que não era uma atmosfera propícia a eleições; e, depois, porque
tinha acabado de haver eleições legislativas dois meses antes, e não faria
sentido convocar novas eleições dentro de um intervalo tão curto.
Diferentemente, agora, não houve qualquer morte violenta (felizmente); e as
últimas eleições já foram há mais de dois anos.
g) É certo, por outro lado, que o País ganha em beneficiar com a
estabilidade política e governativa. Mas quem quebrou a estabilidade, neste
caso, foi o primeiro-ministro cessante, não foi o Presidente da República,
nem o Parlamento. E alguém pode garantir-nos que um novo primeiro-ministro,
escolhido sem eleições terá legitimidade política e autoridade institucional
suficientes para assegurar estabilidade ao país?
h) Por todas estas razões, permito-me solicitar-lhe Sr. Presidente que
dissolva a Assembleia da República e convoque eleições gerais para o Outono;
para não converter a nossa democracia em "partidocracia". E que o faça antes
de o PSD lhe propor qualquer nome, em concreto para o cargo de
primeiro-ministro, de modo a não transformar uma questão de princípio numa
questão pessoal.